No imaginário de todas as crianças esta época do ano causa uma grande dose de expectativas e emoções antecipadas e contidas. Muitas esperam ansiosamente pela chegada da noite da véspera de Natal para abrirem os pacotes contendo seus presentes. Antigamente, colocavam-se meias nas janelas na esperança de que o bom velhinho as enchesse com os presentes e os pequenos mal ousavam fechar os olhos de tanta antecipação.
Mas a história que pretendo aqui contar tem pouco a ver com as crianças, ou com ceias ou festas ou comemorações. Na verdade, trata-se de algo bem distinto mesmo. É a história de uma jovem que grávida de primeira vez, com seu marido mais velho mas nem por isso mais experiente nestas questões de nascimento, que desalojados de sua casa devido a uma das muitas tragédias naturais que assolam o planeta maltratado pelos homens, buscavam em vão um lugar num hospital qualquer naquela grande e impessoal cidade. As luzes cintilando, os muitos votos de “Feliz Natal” que saltitavam das vitrines e dos letreiros enormes, os milhões de objetos sendo comprados e presenteados, aquele cheiro de carne assando e gente se abraçando ao comemorar outro nascimento, tão ou menos glamoroso.
Mas estamos na época moderna e as pessoas vivem por simbolismos. Constroem árvores de natal, iluminam as fachadas de suas casas e empresas, mandam milhões de cartões e e mail e sms de boas festas, mas o verdadeiro motivo das comemorações há muito se esvaiu da memória coletiva.
Nosso improvável casal de maltrapilhos, sem teto e sem destino continua seu périplo pelos hospitais sendo sempre recebidos com a mesma expressão de desolação, acompanhada da fatídica frase: “não temos leitos disponíveis.....se ao menos vocês tivessem plano de saúde....”
O acelerar da alegria artificial das pessoas, o aumento do teor etílico nos lares e nas festas faz crer que a meia noite se aproxima, e nossa jovem Maria, cansada de tanto caminhar, resolve sentar-se um pouco, debaixo da marquise da construção de um enorme prédio comercial. Seu marido, José, insiste para que continuem, pois a barriga enorme parece prestes a explodir a qualquer momento. Mas ela, muito cansada, prefere sentar-se um pouco. Uma chuva fina e fria começa a cair e em poucos minutos se transforma numa tempestade, tendo os céus iluminados por relâmpagos que parecem gigantescas luzes de natal. O casal, que havia perdido tudo, se abraça e ela começa a soluçar. A poucos passos dali, carros velozes e potentes, cruzam perigosamente as esquinas em busca de seus destinos alegres e suas comemorações movidas a bebida e comida.
Um vulto aproxima-se, surgido do nada e olha para o casal, abraçados e conformados com seu destino de desapego. Um homem alto, envolto em uma espécie de túnica aproxima-se e sem proferir palavra, sorri benevolentemente em direção aos dois. Ambos, perdidos em suas respectivas angústias, sentem a aproximação do estranho e levantam seus rostos cansados. Que são imediatamente iluminados por um sorriso que irradia júbilo e paz. Naquele exato instante, todos os temores, as dores, as dúvidas, as inseguranças se evaporam e sabem que o estranho tem algum tipo de poder que os libertara das misérias terrenas e suas medíocres garras que os puxam para baixo.
Em poucos minutos se vêem transportados para um lugar seco, bem iluminado e aquecido. A criança faz sua entrada triunfal no mundo em meio a um glorioso berreiro, como a marcar território. Os dois estão extasiados com o novo lugar e mal podem compreender o processo que os transportou para ali em questão de milésimos de segundo. Abraçam-se com força e olham para cima, como a buscar seu Salvador. Mas ele já não está mais ali, e eles olham então, para baixo e numa espécie de tela, abaixo, muito abaixo de onde estão, podem ver a imensa cidade à seus pés. Uma espécie de zoom vai aproximando a imagem das nuvens penetra por elas e mostra o teto dos prédios, as luzes feéricas a brilhar naquela noite santa e mais abaixo, debaixo da marquise de uma construção qualquer, em uma grande cidade qualquer, um casal jaz abraçado, mortos por inanição e abandono. A chuva amaina um pouco e os transeuntes, em pressa e em buscas de seus lares particulares ignoram aqueles dois pequenos vultos, como a dormir abraçadinhos embolados num cantinho.
Poucos minutos depois, meia noite e uma grande explosão de fogos. As pessoas, com lagrimas nos olhos, comemoram o nascimento de um menino judeu que acreditam veio para salva-las. Mal sabem elas, que a oportunidade de salvação há muito se perdeu e que por mais que olhemos, não conseguimos enxergar um palmo diante de nossos próprios narizes, quando se trata de amor e fraternidade. Alguns blocos adiante, os comerciantes abrem suas caras champagnes a comemorar os enormes lucros que este Natal lhes trouxe, maior que nos anos anteriores. E a gigantesca nave, planeta humanidade, continua seu curso desabalado em direção a um enorme buraco
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